O ensaio é o gênero do debate por excelência. Três produções do ensaísta Gilles Lapouge embasam uma análise que busca demonstrar como a habilidade de tecer sentidos aliada ao espaço para crítica ampliam o campo da discussão do mundo contemporâneo.
Na grandiosa Ágora reuniam-se as cabeças pensantes de Atenas para decidirem os assuntos importantes da cidade. Cidadãos iluminados portavam o direito de expor sua opinião e discutir abertamente seu ponto de vista. Nascia na Grécia a democracia e consagrava-se a liberdade de expressão como um de seus pilares. É também baseado na liberdade de expressar opiniões e críticas que encontra-se o ensaio. Gênero literário escrito por excelência, poderia ser traduzido em uma intensa conversa entre amigos bem informados que tratam dos assuntos da atualidade. É no ensaio que o autor sente-se à vontade de argumentar seu ponto de vista sem a necessidade de convencer o júri ou sem a pretensão de esgotar as possibilidades do cientista. O ensaio é a Ágora que precisamos não somente para que nos ouçam, mas para escutar e entender.
A presente análise se propõem a estudar três ensaios do jornalista e escritor Gilles Lapouge, publicadas no jornal O Estado de São Paulo. São eles: Europa constrói muros para barrar imigrantes (de 09/01/2011), Exportação de desgraças (de 05/08/2011) e As botas da internet (de 16/01/2011). Lapouge usa o ensaio como sua Ágora, expõe suas críticas, faz suas próprias análises e coloca o tema em debate. O autor é capaz de reunir informações dispersas e dar sentido ao caos da atualidade. Ele é o historiador do presente, aquele que busca nexo em eventos simultâneos aparentemente dispersos, mas que formam o painel contemporâneo.
Os três ensaios de Lapouge são um espaço para debate por excelência. Especialmente em Europa constrói muros para barrar imigrantes, ele reúne dados sobre a construção de muros nas fronteiras de diversos países. Eventos que pareciam isolados e motivados por diferentes realidades argumentam a favor da tese de que, apesar da globalização, nunca tantas nações isolaram-se por meio de muros físicos. O autor argumenta com fatos, com números, com histórias. Ele cita nominalmente treze países que já ergueram um ou mais muros em suas fronteiras. Como em um debate informal, não se preocupa em citar fontes e assegurar a credibilidade de cada dado. Ele é a autoridade em sua própria Ágora. Com um estilo irônico, ele critica a realidade contraditória que emerge como eventos desconexos, mas que seu olhar identifica como totalidade. Com subjetividade indisfarçada ele afirma que “pedreiros tem um belo futuro pela frente”. No ensaio, sua credibilidade não é afetada por sua subjetividade: é uma análise pessoal e autoral que esperamos ao ler Gilles Lapouge.
Apesar de não encerrar a questão ao final de uma discussão ensaística, o autor apresenta propostas e hipóteses plausíveis dentro de sua argumentação. Ele toma as emaranhadas linhas dos noticiários diários e tece um painel compreensível do que se passa no mundo, na sociedade, na humanidade. Em Exportação de desgraças, Lapouge nos apresenta um cenário da crise européia para discutir as consequências da globalização. Haveriam chegado a este ponto os países europeus não estivessem tão vitalmente conectados e dependentes? Quem pensaria na globalização neste momento a não ser o ensaísta? Ele é livre para acusar, criticar e expor o próprio pensamento a sua maneira. Seu estilo é simples e direto, frases curtas, de fácil apreensão. Ele dramatiza a situação, abusa de figuras de linguagem e adjetivações e, com frases de efeito, ganha seu leitor. Ironizando diz que:
“Todo mundo já sabia disso, exceto Berlusconi e Zapatero. É verdade que estes dois infelizes trabalham demais. Sem dúvida não têm tempo para ler os jornais, informando há várias semanas sobre a bomba caindo sobre suas cabeças. No entanto, bastava examinar os números para saber que o vendaval já chegara por ali.”
Este é o espaço para discutir não apenas a globalização, a crise, enfim, os fatos inegáveis em si, mas também a inabilidade dos dirigentes políticos na visão oposicionista do autor. A ele é permitido ter partido, preferido e opinião.
No terceiro ensaio analisado, As botas da internet, um Lapouge mais contido conta sobre a Primavera Árabe de seu ponto de vista otimista. Ele lança hipósteses, mais uma vez não se preocupa com as fontes, mas não traz arroubos críticos e nem mesmo laudatórios. Ele conta o que afirma haverem os veículos de mídia ignorado. Ele usa a força das declarações que partiram de dentro da revolta para expressar seu apoio a tais revoluções. “Uma palavra grandiloquente, ingênua e estranhamente eficaz ressoou então no céu da Tunísia. ‘Uma serpente de mil cabeças saiu às ruas’, proclamou Zuheir Makluf, um blogueiro de Túnis.” Neste terceiro ensaio o autor é mais factual, mas não distante ou ingênuo, ele sabe bem escolher o que apresentar ao leitor. Lapouge apresenta um panorama, amarra os sentidos que já se delineavam e nos faz refletir sobre o poder da internet como arma contra o autoritarismo consagrado. Apesar de apresentar um tom diferente dos demais ensaios visitados, ele não abre mão do ensaísmo e usa seu espaço de debates para apontar tendências e mostrar que, em seu ponto de vista, algumas vezes a realidade em si basta como faísca. Este texto não se esgota em si mesmo e a isso não aspiram os ensaios.
O ensaio-ágora não é o discurso de um único debatedor. Neste espaço de discussões há um silencioso respeito pela vez do outro em expor sua opinião de forma simples e sábia até que o turno do próximo se apresente. Lapouge não pretende ser o dono da verdade, apenas o dono da palavra. E vale a pena ouví-lo.
[por Daniela Urquidi, setembro de 2011]
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