– O que você vai fazer com o piano?, perguntei desviando o olhar.
– Um amigo pediu pra ficar com ele até eu voltar, o carreto vem amanhã.
Ela tinha uma displicência na fala. Falava enquanto olhava o vaso com um único girassol que eu acabara de lhe dar com a languidez do oceano. Agradecera com um beijo daqueles longos e precisos, que chegam bem ao fundo da alma, e um abraço sincero de quem é feliz sem motivo. Ela tornava o adeus impossível.
– Me disseram que é pra deixar no sol o dia todo se puder. Pega sol aqui na varanda?
– Pega bastante – respondeu enquanto digitava uma mensagem a algum interessado em comprar a geladeira. Depois voltou a prestar atenção em mim.
– Já consegui um bico quando chegar lá, uma amiga disse que posso tocar com eles por algumas noites.
– Mas e o pessoal daqui, não se sentiu deixado na mão? – Ela já estava na lavanderia enquanto eu falava alto para ser ouvido.
– Eles entendem né, a maioria dá o maior apoio. Têm uns chamados da alma que a gente precisa atender, não tem discussão.
Eu queria que tivesse. Minha vontade era de arranjar uma briga ali mesmo, implicar com a cor da parede e sair impetuosamente pela porta com um motivo para não querê-la mais. Mas a forma como ela arrumava o girassol solitário com a pá e o regador me fazia lembrar de como era aquela liberdade desinteressada e cuidadosa, ao mesmo tempo, que me atraía. E eu não era dado a arroubos, a fantasia acabava aí. Mudei de assunto, sem graça, sem nem saber porquê.
– Eu li que a raiz de um girassol pode chegar a um metro e meio. E que a planta pode chegar a dois metros. Se nos empilhássemos podíamos brincar de girassol.
Ela sorriu do meu desajeito com as palavras, brincou com meus dedos e se aninhou no meu peito. Era uma tarde acalorada de fevereiro e o apartamento ecoava cada som no vazio permeado por caixas. Eu queria pedir que ela ficasse, mas não podia. Não a ela que precisava ganhar o mundo, que vivia cada momento e ansiava pela aventura de novas histórias, novos cenários, novos sons.
Nesse instante uma borboleta chegou farfalhando eternidades com suas asas brancas, sobrevoando nossas cabeças. Ondulou sobre o girassol mas preferiu pousar sobre sua mão estendida. Meu coração apertado e desamparado não aguentou:
– Toca pra mim?
E era tocando que ela brilhava mais e deixava o sol da tarde com ciúmes. De costas, postura ereta, cabeleira farta, as mãos graciosas deslizando e o apartamento iluminado por nossa música favorita. Escondi uma lágrima e abracei-a com toda a ternura do mundo. Não importa onde fosse, seguiria para sempre aquela música, aquelas mãos, aquela luz.
[por Daniela Urquidi, 26/02/2019]
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