Flor do sol [conto]

– O que você vai fazer com o piano?, perguntei desviando o olhar.

– Um amigo pediu pra ficar com ele até eu voltar, o carreto vem amanhã.

Ela tinha uma displicência na fala. Falava enquanto olhava o vaso com um único girassol que eu acabara de lhe dar com a languidez do oceano. Agradecera com um beijo daqueles longos e precisos, que chegam bem ao fundo da alma, e um abraço sincero de quem é feliz sem motivo. Ela tornava o adeus impossível. Continue lendo “Flor do sol [conto]”

A hora mais escura [conto]

Ele sabia que essa terça-feira seria diferente desde a hora que acordara. Era um dia nublado de trabalho, como outro qualquer de inverno, mas pressentia a surpresa no ar. Não gostava de surpresas, definitivamente não. Seu tempo no exército alemão o havia treinado a ser meticuloso, organizado e sobretudo desconfiado. Dormia com sua arma embaixo do travesseiro, motivo de disputas frequentes com Continue lendo “A hora mais escura [conto]”

Não sei sambar [crônica]

Grossas gotas de chuva e um sol dourado de fim de tarde. O bloco se dispersava mas a rua ainda era nossa, e como eu queria que fosse ainda e ainda e ainda. Sinto às vezes que desfruto do Carnaval como estrangeira, alheia à cultura que de tão sedutora parece externa a mim. Me entrego à aglomeração, ao êxtase coletivo, aos sonhos de cores, corpos e amores e assisto como espectadora ao Arlequim chorando pelo amor de Colombina no meio da multidão. Continue lendo “Não sei sambar [crônica]”

Desdém [crônica]

Quem nunca sofreu por amor que atire a primeira mentira. Nesta existência confusa, há um prazer sádico em buscar apaixonar-se, em insistir naquilo que nunca deu certo. Não é simples ser solteiro no século XXI — aliás, sitcoms intermináveis já foram dedicadas a rir da fossa dos solteiros, para o bem e para o mal. E sempre haverá mais um conselho, mais uma esperança, uma nova forma de frustração. Continue lendo “Desdém [crônica]”

A Rita

Foi a biografia da Rita Lee em sua mão que finalmente me fez quebrar o gelo. O serviço de jantar já tinha começado e a tranquilidade ritmada das turbinas logo seria quebrada por ruídos atarefados. Fora um presente de sua mãe e agora entendia porque ela era tão louca por Rita Lee. Contei que a havia conhecido rapidamente num insano backstage Continue lendo “A Rita”

Detergente Macbeth

O comercial de detergente gritava da TV: “Fora, maldita mancha, fora!”. Prometia milagres esse detergente. Mas será que o detergente podia mesmo limpar minhas traiçoeiras mãos? Parece que consegue tirar todo o cheiro, mais que os perfumes da Arábia, aquele detergente. O que foi feito não pode ser desfeito, já está colada na minha cabeça a música do comercial de detergente.

[por Daniela Urquidi, 12/02/2018]

Silêncio

Já não sei se acordada
ou dormindo,
Sigo por esta estrada com
um passo após o outro,
Sem bem enxergar ou
sentir, marchando no
rumo que sem palavras
se impôs intransigente.
Indiferente ao caminho turvo
algo toca minha mão e
Num estremecimento
Desperto de meu transe.
É tua mão a segurar minha alma,
A me dar a certeza de que
há sopros de alívio e paz
e que é possível ser feliz.
Já não sei se acordada
ou dormindo,
mas por favor faça silêncio:
Há vida nascendo.

 

[por Daniela Urquidi, 06/01/2019]

📷 @moroni.u

Anoitecer

Não sei bem ao certo como começar
Mas me parece sensato que
Comecemos por nossos sentimentos
Até que a escuridão nos envolva
E permita que nossos eus se entrelacem
No silêncio de nossas vozes
No tecer de nossos beijos
Na noite úmida de si.

 

[por Daniela Urquidi, 16/01/2019]

📷 @durquidi

Libertação

Sempre me senti intimidada pelos grandes. Olhava para meus mestres e eles me paralisavam ao invés de me motivar. Queria tanto ser como eles que, consciente de minha pequenez, desistia da empreitada antes da certeira frustração. Eu tentava entender suas estratégias, reproduzi-las, mas me sabia mera imitação. Imperfeição. Se eles deram ao mundo suas obras primas, o que haveria sobrado para mim? Continue lendo “Libertação”

Preço

(…) E o que é o luto senão o saber-se só, o reconhecer-se menor, o pagar o preço da transformação para uma vida em que já algo não há, porém manter-se inteiro?

[por Daniela Urquidi, 05/06/2018]

Álgebra

Eu sou meia dúzia.
Sou eu inteira
Em meia dúzia
Completa.
Ser dúzia completa?
Seria duas vezes
Mim mesma inteira
A transbordar.
Vai-se um
Chega outro
Multiplica-se um sonho
Raiz quadrada de uma ilusão
E continuo inteira
Meia
Dúzia.

[por Daniela Urquidi, 04/06/2018]

Inferno

I have had a burning passion.
So in love that
it consumed me.
Living the high
of giving myself entirely
to love.

And then I was cinders.

It was a flame
then a fire
then just ashes.

I was the ashes.
Because as high as I have flown,
as hard and deep was my fall.

But I have the badge,
I know how it feels
and how short it is doomed to be.

It’s life wrecking
and oh! so worth the pain.

[by Daniela Urquidi, 05/06/2018]

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