Flor do sol [conto]

– O que você vai fazer com o piano?, perguntei desviando o olhar.

– Um amigo pediu pra ficar com ele até eu voltar, o carreto vem amanhã.

Ela tinha uma displicência na fala. Falava enquanto olhava o vaso com um único girassol que eu acabara de lhe dar com a languidez do oceano. Agradecera com um beijo daqueles longos e precisos, que chegam bem ao fundo da alma, e um abraço sincero de quem é feliz sem motivo. Ela tornava o adeus impossível. Continue lendo “Flor do sol [conto]”

A Rita

Foi a biografia da Rita Lee em sua mão que finalmente me fez quebrar o gelo. O serviço de jantar já tinha começado e a tranquilidade ritmada das turbinas logo seria quebrada por ruídos atarefados. Fora um presente de sua mãe e agora entendia porque ela era tão louca por Rita Lee. Contei que a havia conhecido rapidamente num insano backstage Continue lendo “A Rita”

Detergente Macbeth

O comercial de detergente gritava da TV: “Fora, maldita mancha, fora!”. Prometia milagres esse detergente. Mas será que o detergente podia mesmo limpar minhas traiçoeiras mãos? Parece que consegue tirar todo o cheiro, mais que os perfumes da Arábia, aquele detergente. O que foi feito não pode ser desfeito, já está colada na minha cabeça a música do comercial de detergente.

[por Daniela Urquidi, 12/02/2018]

Silêncio

Já não sei se acordada
ou dormindo,
Sigo por esta estrada com
um passo após o outro,
Sem bem enxergar ou
sentir, marchando no
rumo que sem palavras
se impôs intransigente.
Indiferente ao caminho turvo
algo toca minha mão e
Num estremecimento
Desperto de meu transe.
É tua mão a segurar minha alma,
A me dar a certeza de que
há sopros de alívio e paz
e que é possível ser feliz.
Já não sei se acordada
ou dormindo,
mas por favor faça silêncio:
Há vida nascendo.

 

[por Daniela Urquidi, 06/01/2019]

📷 @moroni.u

Anoitecer

Não sei bem ao certo como começar
Mas me parece sensato que
Comecemos por nossos sentimentos
Até que a escuridão nos envolva
E permita que nossos eus se entrelacem
No silêncio de nossas vozes
No tecer de nossos beijos
Na noite úmida de si.

 

[por Daniela Urquidi, 16/01/2019]

📷 @durquidi

Libertação

Sempre me senti intimidada pelos grandes. Olhava para meus mestres e eles me paralisavam ao invés de me motivar. Queria tanto ser como eles que, consciente de minha pequenez, desistia da empreitada antes da certeira frustração. Eu tentava entender suas estratégias, reproduzi-las, mas me sabia mera imitação. Imperfeição. Se eles deram ao mundo suas obras primas, o que haveria sobrado para mim? Continue lendo “Libertação”

Preço

(…) E o que é o luto senão o saber-se só, o reconhecer-se menor, o pagar o preço da transformação para uma vida em que já algo não há, porém manter-se inteiro?

[por Daniela Urquidi, 05/06/2018]

tenho ainda uma coisa a dizer…

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

– O sal da língua (1995), de Eugénio de Andrade

📷: @portroche (Gervasio Troche)

O Brazil Doado [resenha]

BIONDI, Aloysio. O Brasil Privatizado: um balanço do desmonte de Estado. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2003.

O livro de Aloysio Biondi “O Brasil privatizado” é amargo como uma briga perdida. O autor, derrotado e rancoroso, quer a todo custo provar em números e vírgulas (das cifras dos milhões e bilhões) que o Governo enganou o cidadão, mentiu escandalosamente, defraudou o patrimônio do contribuinte e beneficiou os compradores das empresas estatais. Continue lendo “O Brazil Doado [resenha]”

Para fazer a diferença

Quando a perversidade cotidiana nos atacava, nos apoiávamos num sonho desbotado.

Quando as pressões e responsabilidades nos assaltavam, nos refugiávamos entre camaradas. Quando os obstáculos pareciam maiores que nossas pernas e forças, mentores nos impeliram além das capacidades manifestas.

Quatro anos se passaram como um sonho. Fomos testados, estimulados, censurados, renovados, superados e aperfeiçoados. A aprendizagem nunca termina, só muda de formato. E foi nos diversos moldes encontrados na faculdade que minha juventude foi forjada. Continue lendo “Para fazer a diferença”

Segundos [crônica]

Era noite escura, por volta das 21 horas e caminhávamos lado a lado. Estávamos prontas para ir pra casa depois de um dia cansativo de trabalho batendo portas e tentando falar sobre religião para pessoas ocupadas e desinteressadas. Mas estávamos felizes e satisfeitas por termos cumprido nossas responsabilidades e estarmos a apenas três quarteirões de casa. Continue lendo “Segundos [crônica]”

Limites ou possibilidades? [ensaio]

Há muito no mundo que não é compreendido, mas tudo o que o é passa a ser imediatamente transmitido. A criança conta à mãe o que aprendeu na escola, o cientista escreve um ensaio sobre suas descobertas, o amigo ouve confissões, o louco fala sozinho. A língua parece ser mais do que o veículo de ideias, muitas vezes ela mesma parece tornar a ideia concreta pelo simples ato de ser enunciada. Continue lendo “Limites ou possibilidades? [ensaio]”

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