A hora mais escura [conto]

Ele sabia que essa terça-feira seria diferente desde a hora que acordara. Era um dia nublado de trabalho, como outro qualquer de inverno, mas pressentia a surpresa no ar. Não gostava de surpresas, definitivamente não. Seu tempo no exército alemão o havia treinado a ser meticuloso, organizado e sobretudo desconfiado. Dormia com sua arma embaixo do travesseiro, motivo de disputas frequentes com Continue lendo “A hora mais escura [conto]”

Não sei sambar [crônica]

Grossas gotas de chuva e um sol dourado de fim de tarde. O bloco se dispersava mas a rua ainda era nossa, e como eu queria que fosse ainda e ainda e ainda. Sinto às vezes que desfruto do Carnaval como estrangeira, alheia à cultura que de tão sedutora parece externa a mim. Me entrego à aglomeração, ao êxtase coletivo, aos sonhos de cores, corpos e amores e assisto como espectadora ao Arlequim chorando pelo amor de Colombina no meio da multidão. Continue lendo “Não sei sambar [crônica]”

Desdém [crônica]

Quem nunca sofreu por amor que atire a primeira mentira. Nesta existência confusa, há um prazer sádico em buscar apaixonar-se, em insistir naquilo que nunca deu certo. Não é simples ser solteiro no século XXI — aliás, sitcoms intermináveis já foram dedicadas a rir da fossa dos solteiros, para o bem e para o mal. E sempre haverá mais um conselho, mais uma esperança, uma nova forma de frustração. Continue lendo “Desdém [crônica]”

Inferno

I have had a burning passion.
So in love that
it consumed me.
Living the high
of giving myself entirely
to love.

And then I was cinders.

It was a flame
then a fire
then just ashes.

I was the ashes.
Because as high as I have flown,
as hard and deep was my fall.

But I have the badge,
I know how it feels
and how short it is doomed to be.

It’s life wrecking
and oh! so worth the pain.

[by Daniela Urquidi, 05/06/2018]

Ser fugaz [ensaio]

“O nosso eu é edificado pela superposição de estados sucessivos” – Marcel Proust

A partir de percepções primárias observamos que o homem regular muda e se transforma ao longo de seu desenvolvimento. Passa de bebê passivo a jovem exuberante, de vivacidade constituída a sobriedade senil. Descobre o mundo, a comunicação, a linguagem, a si mesmo e aperfeiçoa sua capacidade crítica e habilidade intelectual. O homem é, sobretudo, diferente de si mesmo ao longo de sua vida. Seres e existires acumulados que constituem uma forma única de ser para um determinado momento. Continue lendo “Ser fugaz [ensaio]”

tenho ainda uma coisa a dizer…

Escuta, escuta: tenho ainda
uma coisa a dizer.
Não é importante, eu sei, não vai
salvar o mundo, não mudará
a vida de ninguém – mas quem
é hoje capaz de salvar o mundo
ou apenas mudar o sentido
da vida de alguém?
Escuta-me, não te demoro.
É coisa pouca, como a chuvinha
que vem vindo devagar.
São três, quatro palavras, pouco
mais. Palavras que te quero confiar,
para que não se extinga o seu lume,
o seu lume breve.
Palavras que muito amei,
que talvez ame ainda.
Elas são a casa, o sal da língua.

– O sal da língua (1995), de Eugénio de Andrade

📷: @portroche (Gervasio Troche)

Mistério Latino

Figura exótica, feito curvas de Gaudí. Sem demora de observação, puxam a atenção brilhantes olhos: grandes, imensos, serenos como o lago Titicaca, encanto de elevadas alturas. Tão negros quanto madrugada no deserto do Atacama. São pedras de ônix perdidas no chaco: úmidas, profundas, olheiras cansadas de lama. São enfeitadas por cílios de carvão milenar muito compridos. Emoldurando olhos hispanos, duas sobrancelhas fortemente definidas como desenho de Picasso. Continue lendo “Mistério Latino”

Sê inteiro

Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim como em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.

[por Fernando Pessoa/Ricardo Reis, “Ode”]

noite_balao

 

Nosso melhor retrato

“Nossa língua, o português do Brasil, é fruto de uma longa história. Criação coletiva que afirma e expressa nossa identidade, ela está todo o tempo sendo reinventada por nós: nas roças, nas ruas e favelas, em nossos ritmos e ritos, nos poemas e nas canções. Todos somos autores de nossa língua, todos somos seus alunos e professores.
Nossa língua é, portanto, nosso melhor retrato.”

-Museu da Língua Portuguesa

Para lembrar ao mundo [resenha]

► HERSEY, John. Hiroshima. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Hiroshima, de John Hersey é uma reportagem que corrobora com a tese do jornalismo espelho da realidade. Transformada em literatura, torna-se uma narrativa com dados reais, pessoas de verdade e certo lirismo. Não bastasse a grandiosidade do tema — os efeitos da primeira bomba atômica —, a abordagem e o tratamento emprestados aos dados envolvem, informam e tocam. Continue lendo “Para lembrar ao mundo [resenha]”

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